quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Sobre a autoreferência - Existir é uma contradição

É possível definir o que é verdade? Na aritmética, com certeza 1 + 1 = 2, mas existe um Teorema, chamado 'Tarski's undefinability theorem", que diz o seguinte:

"arithmetical truth cannot be defined in arithmetic"

Ora, se não pode ser definido lá, de onde vem? Do universo, você responde, pois nele estão as leis da lógica na forma de processos naturais. Mas é a matemática que segue as leis do universo, ou o universo que segue as leis da matemática?

Quem acredita que a matemática é uma descoberta, compactua com a primeira afirmação. Os que acreditam que ela é uma linguagem, como eu, preferem a segunda.

"No sufficiently rich interpreted language can represent its own semantics"

A matemática não consegue explicar sua própria existência. Essa afirmação faz parte do teorema citado anteriormente. Ele abre a porta do desconhecido na aritmética através de um paradoxo muito interessante, que da origem ao conceito de números indefinidos. Como diversos outros teoremas da lógica (a aritmética da linguagem) ele foi provado por contradição. Da prova surge um tipo especial de número, algo que faz a divisão por zero parecer normal.

"undefined numbers"

Sim, números indefinidos, não confundir com as indeterminações do cálculo diferencial. Os números indefinidos surgem apenas das afirmações que geram contradição na aritmética de primeira ordem. Eles são como a materialização dos paradoxos, é possível falar sobre eles, mas ao falar, se gera uma contradição. Para que a contradição deixe de existir e a matemática volte a ser consistente, é necessário expandir a matemática para uma metamatemática.

Quando você tenta definir algo, precisa utilizar uma linguagem para isso. Logo, já podemos dizer que a condição necessária para definir algo é que primeiro exista uma linguagem. A linguagem é algo que permite falar do que está sendo definido. Quando você tenta falar das propriedades da línguagem utilizada para fazer tais definições, uma nova forma de linguagem é criada, a metalinguagem. A metalinguagem tem de ser mais ampla do que a linguagem em si para poder fazer afirmações sobre. A metalinguagem da matemática é a lógica. O problema é que toda a lógica é pura matemática, existe um homeomorfismo que permite estabelecer uma relação um-para-um entre ambas, a consequência disso é que a matemática não consegue sair de si mesma. O mesmo ocorre com qualquer outra linguagem, até com a gente. Nós também não conseguimos sair de si mesmos, por isso, toda e qualquer definição que fazemos de nós é passível de contradição, pois sempre que uma linguagem fala se si própria, pode gerar paradoxos (ver Teoremas da Incompletude de Godel).

"Essa frase é falsa"

(A frase é verdadeira? Pois então ela é falsa.)
(A frase é falsa? Pois então ela é verdadeira.)

Vamos definir um número contraditório - um número paradoxal - utilizando a linguagem natural. Apreciem o Paradoxo de Berry (traduzido e adaptado numericamente ao português por mim mesmo).

Imagine o seguinte número: "O menor número inteiro positivo que não pode ser escrito com menos de oitenta letras"

Exemplo um: 11 (onze) é um número inteiro, mas é escrito com apenas 4 letras, logo, 11 não pode ser o número ao qual a sentença se refere.

Exemplo dois: 845.558.978 (oitocentos e quarenta e cinco milhões, quinhentos e cinquenta e oito mil, novecentos e setenta e oito) é um número inteiro e tem 83 letras. Poderia ser esse número? Sim, ele obedece as duas condições. Primeira: ele é um número inteiro; segunda: não pode ser escrito com menos de 80 letras. Mas será que ele é o menor dos inteiros que obedece essas duas condições? Provavelmente não.

Qual é esse número não interessa, você percebeu que ele existe, e o mais importante, percebeu que ele é único, pois só existe um MENOR inteiro que não pode ser escrito com menos de 80 letras. Vamos chamar esse número de N. 

Agora leia novamente a definição de N: "O menor número inteiro positivo que não pode ser escrito com menos de oitenta letras". Vamos chamar essa definição de L (L⇒N). Se você contar, L tem apenas 70 letras. Mas o número que L define "não pode ser escrito com menos de oitenta letras", mas veja que L, ela própria, é escrita com menos de 70 letras, e ela define um número! S não pode ter menos de 80 letras, mas tem, pois a definição de S é L, que tem 70 letras. 

O que L está dizendo é o seguinte: eu não posso ter menos de 80 letras, mas tenho. Nosso número é paradoxal porque L faz referência a si própria. L tenta (e consegue) definir um número utilizando a quantidade de letras do número, mas quando fazemos isso com L, utilizando a quantidade de letras dela, ela prórpria não obedece a si mesma.

Agora imagine a função Conta Letras (CL), por exemplo: CL(2) = 4, pois 'dois' tem 4 letras. Agora, vamos aplicar CL em L. CL(L) = 70. Pois L tem 70 letras. Mas L⇒N. Então CL(L) = CL(N). Só que CL(N) ≥ 80. É impossível que:

CL(L) = CL(N),
CL(L) = 70, e
CL(N) ≥ 80.

Nossa linguagem não é formal como a lógica. Todos sabemos que ela permite criar paradoxos por autoreferência, o legal é que a matemática também permite criar paradoxos, pois tudo que é capaz de expressar recursividade, é passível de contradição. Alguém pode dizer que isso talvez essa seja uma limitação das palavras, mas aí é que tá, não é. Gödel fez isso na matemática, tentou definir ela por ela mesma. O resultado foi o Teorema mais fudido de todos: os Teoremas da Incompletude de Gödel.