sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Sobre psicodélicos - A Lógica Transcendental de Kant

O idealismo transcendental é uma terminologia formulada por Immanuel Kant que diz ser possível adquirir conhecimento de acordo com a sensibilidade do ser. Para entender isto é necessário saber que Kant considera inacessível à razão os objetos como eles realmente são. Isto significa que Kant considera qualquer objeto algo transcendental, mesmo que seja um objeto ordinário, ele transcende o que você acredita que ele é. Logo, quaisquer objetos que queiramos alcançar com o conhecimento estão para além da cognição humana, de forma que sempre falamos deles de forma aproximada. Para Kant, sequer temos a capacidade de concebê-los. Partindo disso, Kant separa as faculdades do pensamento em duas instâncias, os sentidos e o entendimento. Em suas palavras:

 

 

“Nenhuma destas faculdades tem prioridade sobre a outra. Sem os sentidos, nenhum objeto nos seria dado, e sem o entendimento nenhum objeto poderia ser pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, consciência sem conceitos é cega [...] O entendimento não pode perceber e os sentidos não podem pensar coisa alguma. Somente quando se unem, resulta o conhecimento.” [1].

 

 

Definidas estas duas faculdades, Kant inicia a sua lógica transcendental, que incorpora o racionalismo e o empirismo. Kant, concorda com os dois quando afirma que as ideias, para existirem, precisam passar pelos sentidos, mas para fazer sentido, elas necessitam de uma estrutura, e esta estrutura do pensamento nasce conosco. De um lado ele concorda com os racionalistas, ao dizer que nascemos com algo, por outro lado ele concorda com os empiristas, quando diz que as ideias somente podem ser obtidas através dos sentidos. A diferença é que ele assume a simultaneidade de ambas no tempo, nenhuma precede a outra, e uma não faz sentido sem a outra.

E o que é a lógica transcendental? É imaginar que o objeto, antes dele ser sentido e pensado, é transcendente. Apenas após passar por nosso intelecto é que obtemos uma ideia aproximada do que ele é. No entanto, isto varia com a sensibilidade de cada um. Alguns exemplos podem ser pensados sobre a sensibilidade, vejamos alguns.

Para o seu cachorro uma lâmpada fluorescente está piscando constantemente, pois o tempo de permanência da luz na retina dele é diferente do tempo de permanência na nossa retina. Se você já olhou para uma lâmpada fluorescente e teve essa impressão, de que ela estava piscando bem rápido, para alguns animais, ela realmente está. Em termos de coisas que não nos são sensíveis, boa parte está nos efeitos de ondas eletromagnéticas. O wifi não existe para nós, apenas para os sensores dos nossos smartphones. O céu não é azul para os pássaros, é violeta, dado que eles enxergam em outra faixa do espectro. A noite não é silenciosa para os morcegos, é infestada de ecos agudos. E os insetos têm um senso estético de beleza super aguçado, pois as plantas desenvolveram flores multicoloridas com infinitos cheiros e sabores no intuito de cativá-los. Isto bem antes de que o ser humano sequer existisse para filosofar sobre o que é belo.


Nesta discussão do transcendental de Kant, é interessante citar a alteração da realidade sensível do ponto de vista dos alucinógenos. Drogas como o LSD, Psilocibina, MDMA, DMT e outras presentes em coquetéis ritualísticos, como a Ayahuasca, são conhecidas por alterar drasticamente a sensação da realidade. Um efeito cientificamente registrado, e que é comum a todas estas drogas, é a Dissolução do Ego. Este é o termo dado ao relato de quando não há mais distinção entre o espaço ocupado pelo corpo e o restante do universo. É quando alguns alegam o contato com uma ordem cósmica, ou espiritual, maior. Os budistas chamam esse estado de Nirvana, uma palavra do Sânscrito que descreve a sensação de completude do ser frente às necessidades do corpo. Não se sente fome, sede, libido ou qualquer outra coisa, apenas um estado de graça que parece ser eterno. 

Do ponto de vista neurológico, certas partes do cérebro, que antes não se comunicavam, passam a operar plenamente suas conexões. Pesquisadores do Imperial College perceberam que as imagens neurais do cérebro, sob efeito do LSD, são similares às do cérebro de um bebê, que é menos compartimentado e mais livre [1]. Isto se traduz sensorialmente em sinestesias e na percepção de fenômenos antes inacessíveis. De certa forma, é a confirmação da alegação transcendental de Kant.

Outro efeito comum da experiência com psicodélicos é a alegação de elevado autoconhecimento causada pela experiência, que se traduz em mudanças de longa duração na perspectiva de vida dos usuários. Como consequência disto, estas drogas são fortemente estudadas no tratamento para Transtornos de Estresse Pós-traumáticos (TSPT), vícios em outras drogas, ansiedade e depressão. Particularmente, duas das revistas médicas mais conceituadas no mundo, a New England Journal of Medicine e a Nature Medicine, recentemente publicaram estudos com resultados promissores no tratamento destas doenças com o uso de psicodélicos [3], [4]. O FDA americano, órgão equivalente à ANVISA no Brasil, pediu que as pesquisas fossem aceleradas devido resultado promissor da pesquisa.


REFERÊNCIAS

[1] KANT. I. Crítica da Razão Pura. 1787. Tradução de J. Rodrigues de Merege. Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia). Obra disponível em: <Domínio Público - Pesquisa Básica (dominiopublico.gov.br)>  . Acesso em: 08/09/2021. 


[2] CARHART-HARRIS, Robin L. et al. Neural correlates of the LSD experience revealed by multimodal neuroimaging. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 113, n. 17, p. 4853-4858, 2016. Disponível em: <https://www.pnas.org/content/113/17/4853> Acesso em: 17/09/2021.


[3] CARHART-HARRIS, Robin et al. Trial of psilocybin versus escitalopram for depression. New England Journal of Medicine, v. 384, n. 15, p. 1402-1411, 2021. Disponível em: <https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2032994?> . Acesso em: 08/09/2021.


[4] NUTT, David J.; DE WIT, Harriet. Putting the MD back into MDMA. Nature Medicine, v. 27, n. 6, p. 950-951, 2021. Disponível em: <https://www.nature.com/articles/s41591-021-01385-8>. Acesso em: 08/09/2021.