Paradoxo. Produto imaterial da linguagem humana, verbo do absurdo. O falso e o verdadeiro interligados em uma fita de Möbius, não orientáveis por natureza. Para o pensamento, playground. Sabendo que seus caminhos sempre levam ao mesmo lugar, alguns brincaram tanto nesses laços que muitos paradoxos carregam o seu descobridor. O Paradoxo de Epícuro, por exemplo, inspira grande debate teológico entre acadêmicos (SOUSA, 2021), os atributos divinos de onisciência, onipotência e benevolência não podem coexistir em um único ser. Em grupo ou individualmente, cada uma dessas características carrega inevitáveis contradições. Acaba que, para fugir da inconsistência, a Deus se atribui uma outra característica, por vezes esquecida pela maioria dos seus seguidores, mas sempre apelada como fuga, pois Deus transcende. Se incompreensível é o Mistério Divino, porque pensar que o suposto criador do tempo e do espaço se submeteria à lógica da sua própria criação?
Imagem: https://www.imaginaryfoundation.com
Paradoxos costumam ser usados na ficção para desligar inteligências artificiais. Se supõe que um computador não seja capaz de suportar a contradição. Yuri Harari, em Sapiens, se tivesse que escolher uma palavra para definir o ser humano, disse que teria escolhido esta. É verdade, nenhum computador pode suportar o contraditório. Computadores não trabalham com a linguagem humana, sua comunicação é rigorosamente definida por portas lógicas, que no fundo, obedecem apenas à aritmética. Esta linguagem, como você deve imaginar, não está sujeita a sinônimos, ambiguidades ou hermenêuticas (interpretações), e deveria, a primeira vista, estar livre das armadilhas da língua falada.
Mas e se não estiver? Em 1931 Godel provou que, nem mesmo ela, a divina matemática, está livre das contradições. Esses resultados se eternizaram como Teoremas da Incompletude, e são, provavelmente, os teoremas mais
importantes do século XX, repercutindo fora da matemática e ocasionando mutações do estilo de pensamento na física, na computação e nas ciências
humanas (LANNES, 2008).
Há inúmeros exemplos, mas alguns são dignos de nota, assuntos metafísicos como o
argumento de que a mente humana ultrapassa qualquer máquina (RAATTKAINEN; PANU, 2005); o argumento da existência de uma lógica divina transcendente; e o argumento da
infinitude do conhecimento natural (LANNES, 2008, p. 121), são todos sustentados pelos
Teoremas da Incompletude.
Não é exagero dizer a filosofia da ciência, como um todo,
foi transformada epistemologicamente por tal teorema. Nas palavras do professor da UFRJ, Ricardo S.
Kubrusly
“O teorema de Gödel é talvez o mais surpreendente e o mais comentado resultado matemático do século. Com certeza, é o mais incompreendido e um dos únicos teoremas que se presta a discussões filosóficas acaloradas e imediatas. Não é preciso estudá-lo a fundo para notar a semelhança entre suas conseqüências e a de algumas máximas da física moderna ou mesmo da metafísica, onde, diferentemente da matemática, a liberdade interpretativa empresta um delicioso sabor de trapaça a qualquer verdade enunciada.” (KUBRUSLY, S/ ANO, p. 1).
Os Teoremas da Incompletude de Gödel têm origem na investigação do terceiro
problema da famosa lista de David Hilbert. Hilbert determinou, no início do século XX, quais
eram os 23 problemas matemáticos que deveriam nortear os esforços de 1900 em diante. O
terceiro problema de sua lista perguntava o seguinte: é possível provar que a matemática é
completa, consistente e decidível? Divaguemos um pouco para entender o que isto significa.
Todo cientista que se preze sabe que suas afirmações são contestáveis. Nas palavras de
Karl Popper “ciência alguma é capaz de chegar à verdade”. Sabemos que o método científico
funciona, o fato de que escrevo isto, neste dispositivo eletrônico, é uma prova cabal disto.
Todavia, por si só, o método não é capaz de se provar, isto é, não é capaz de se explicar e dizer
por que ele mesmo funciona. Na matemática, por outro lado, o método científico não se aplica,
pois ela funciona inteiramente por dedução. Isto significa que, uma vez provado algo não sobra
espaço para alterações. O Teorema de Pitágoras permanecerá válido até o final dos tempos, pois
ele foi provado verdadeiro, algo impossível de acontecer nas ciências empíricas.
Devido a este modo de operar, muitos contestaram se a matemática seria realmente
uma ciência, pois ao contrário das ciências naturais, nela é possível se atingir o conceito
de verdade inabalável. Devido a isto, no final do século XIX, se acreditava que a matemática
fosse um sistema fechado, capaz de provar a si própria, com premissas (axiomas) finitos e livres de
contradição entre si. Mas o que significa, para a matemática, ser capaz de provar a si própria? Significa que
uma vez conhecido o conjunto de axiomas que a sustentam, todo o resto poderia
ser deduzido a partir deles. Isto é, a matemática seria completa e consistente, ao ponto de ser possível escrever um programa que provasse qualquer coisa nela.
Por decidível se
entende o seguinte: se a matemática for decidível, então é possível criar um algoritmo capaz de
provar qualquer sentença – mostrar se ela é falsa ou verdadeira – a partir dos axiomas.
Pois bem, acreditando que isto era possível, muitos matemáticos partiram em busca
destes axiomas, que, se fossem descobertos e listados, tornariam a matemática a verdade
absoluta, divina, de perfeição inabalável, completa, fechada e consistente, como sempre se
sonhou. Em 1931 Kurt Gödel acabou esse fetiche divino, provando, com a força de um teorema,
que isto era impossível.
Fonte: A imagem é do pintor Maurits Cornelis Escher (1898 - 1972).
A alegoria é uma ideia minha.
Vajamos um pouco das consequências práticas dos teoremas de Gödel e do seu
significado para o pensamento humano. Gödel trabalhava nos fundamentos da matemática,
estes fundamentos acabavam de tomar forma com o trabalho de Bertrand Russel e Alfred North
Whitehead, que escreveram uma obra de 3 volumes chamada Principia Mathematica (não
confundir com os Principia Filosofia, de Newton). Publicada em 1913, esta obra tem 2000
páginas de densa notação lógica-matemática, ela objetiva definir uma linguagem simbólica para
a lógica e um conjunto rígido de regras para a manipulação destes símbolos. Levam-se, por
exemplo, 762 páginas para provar que 1+1 é igual a 2, é quando Russel aproveita para comentar
que “a preposição acima é ocasionalmente útil”. Um recorte dessa página está na figura abaixo.
Página da prova de que 1+1 é igual a 2.
Fonte: “Math Has a Fatal Flaw” vídeo do canal Veritasium.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HeQX2HjkcNo&t=785s>.
Pois bem, Gödel provou seus dois teoremas da incompletude em cima desse sistema
formal, uma espécie de metamatemática, neologismo que tem a mesma origem da
palavra metafísica. Este sistema deveria ser livre de contradições e completo, mas não, Gödel
mostrou que existem afirmações que não podem ser provadas. E para provar isso, Godel
encontrou uma contradição, um paradoxo que não poderia ser evitado, e mapeou esse
paradoxo para dentro da aritmética. Não vale a pena entrar em detalhes da prova aqui, que
envolve certos números primos, mas ela não é difícil de se entender, em várias das fontes que
cito é possível encontrar demonstrações informais dela. Particularmente, o vídeo no canal Veritasium é uma ótima introdução.
Continuando, quando Gödel chegou a um absurdo com os números inteiros, isto sem fazer nenhum tipo de manobra ilícita dentro das regras da matemática, muitos pensavam que este resultado não teria nenhuma consequência prática, que se tratava apenas de um malabarismo lógico.
Posteriormente, com o desenvolvimento da computação, Alan Turing mostrou que em qualquer
sistema Turing Completo (capaz de operar a aritmética), sempre existe uma preposição dentro
deste sistema que não pode ser mostrada nem falsa nem verdadeira, isto é, existe um
indecidível!
Isto foi consequência direta dos Teoremas da Incompletude.
Os computadores que utilizamos hoje em dia, seja os da NASA ou nossos celulares,
são todos sistemas Turing Completos. Isto significa que, na prática, existe uma pergunta que
pode ser feita a eles que, inevitavelmente, os farão travar. Isto é assombroso, pois não importa o
quão seguro e infalível seja o sistema, não importa o poder de computação disponível, é possível
garantir que sempre existirá uma pergunta que, quando formalizada na sequência de 1’s e 0’s da
máquina, caso seja processada, a fará travar!
Qual é essa pergunta? Pois bem, a pergunta é
exatamente perguntar, a um determinado programa em execução, se ele próprio irá rodar
indefinidamente (entrar em loop) ou irá parar. Este problema é conhecido na computação como The Halting
Problem (Problema da Parada). Sua análise lógica leva, inevitavelmente, a um paradoxo do qual não é possível fugir com a própria lógica.
Não confunda isso com o papel de um compilador, estamos falando do nível mais básico
de linguagem. Hoje, todos os programas acessíveis ao usuário rodam dentro de outros
programas, mesmo as linguagens de programação mais básicas não têm acesso ao código da
máquina. Isto impede, ou pelo menos dificulta, que o computador trave.
Em termos filosóficos, Gödel demonstrou, preto no branco, que existem limitações inescapáveis na lógica matemática. A única forma de evitá-la é assumindo um sistema aberto, com
infinitos axiomas (incompleto sempre). Mas o que significa, para a matemática, assumir ser
incompleta? Significa que dentro deste sistema sempre haverá afirmações que não podem ser
mostradas nem falsas nem verdadeiras. Desta forma, o preço da consistência é a eterna
incompletude. Para que 1+1 não seja igual a 3 (inconsistência) necessariamente a matemática
tem que ser incompleta, e isto é uma vantagem também, pois se ela é infinita na sua base axiomática, disto decorre que sempre
há mais matemática. É como se, por ser limitada, ela se expandisse infinitamente. Novamente a contradição. De certa forma, Godel garantiu a existência infinita de emprego para os matemáticos, pois não importa o quanto se estude, sempre haverá mais matemática a ser descoberta.
A importância dos Teoremas da Incompletude é tanta que algumas pessoas os utilizaram
como argumento teológico da consistência divina. Os paradoxos relacionados às características divinas surgem porque os analisamos
do ponto de vista da lógica formal (paradoxo da onipotência, paradoxo do livre arbítrio, etc.). Como
a característica principal de Deus é ser transcendente, muitos argumentam que sua lógica
também transcende a lógica humana, e com os Teoremas da Incompletude, os teólogos tem,
realmente, um argumento para dizer que sim, talvez exista algo que para sempre estará além da nossa compreensão.
O próprio Gödel chegou a escrever um trabalho em que provava a existência de Deus, mas não o publicou, pois sabia que sofreria retaliação. Por mais prepotente que isto seja, estamos falando de Kurt Friedrich Gödel, o homem que deixou Einstein em crise existencial com as soluções que encontrou na Relatividade Geral (VAIANO; MONTANARO; HARA, 2020). Com certeza, os argumentos envolvidos valeriam a leitura do texto, mas. infelizmente, a vaidade nos impede de muita coisa. Que bom que São Tomás de Aquino estava ciente disso, caso contrário, nunca teríamos acesso ao seus argumentos cosmológicos.
Para finalizar, quero deixar aqui uma última interpretação, esta é minha, mas concorda
com o que leio sobre estes teoremas. Se nossa lógica é limitada, simplesmente não há
limites para o desconhecido, significa que sempre há algo mais para se descobrir. E se o mundo
natural é descrito pela matemática, então consequentemente o conhecimento natural é infinito.
A tão divina matemática, assumida por Galileu como a própria linguagem de Deus para escrever o universo, necessariamente é imperfeita. A palavra perfeito, do latim per fecto,
significa “totalmente feito”, completa, mas isto ela não pode ser. Cito novamente
o belíssimo texto de Ricardo S. Kubrusly
“Acreditamos que o nosso século se tornará conhecido intelectualmente pelas verdades descobertas por Gödel, que nos marcam muito além do sentimento de fracasso que suas considerações finais possam gerar, resgatando a condição humana, há muito perdida dentro da matemática, que por se pensar divina, fabricou o sonho ingênuo de ser completa, consistente e capaz de desvendar o infinito.” (KUBRUSLY, S/ ANO, p. 1).
Ouroboros
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Este símbolo místico representa o conceito da eternidade através de uma serpente que morde a própria cauda. Pensei nele como outra alegoria sobre a inconsistência da prova de si mesma. A matemática, tentando provar sua completude, chegou à conclusão de que é consistente, se, e somente se, for incompleta.
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Este símbolo místico representa o conceito da eternidade através de uma serpente que morde a própria cauda. Pensei nele como outra alegoria sobre a inconsistência da prova de si mesma. A matemática, tentando provar sua completude, chegou à conclusão de que é consistente, se, e somente se, for incompleta.
BIBLIOGRAFIA
LANNES, W. A Incompletude além da Matemática: Impactos Culturais do Teorema de Godel no Século XX. 2009. Tese (Ciência e Cultura na História). UFMG, Departamento de
História. Disponível em: . Acesso em: 08/09/2021.
RAATTKAINEN, PANU. On the Philosophical Relevance of Godel's Incompleteness Theorems.
Revue internationale de philosophie. 2005. n° 234, p. 513-534. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-internationale-de-philosophie-2005-4-page-513.htm>. Acesso
em: 08/09/2021.
SOUSA, D. O Paradoxo de Epicuro: O problema do Mal. Texto online disponível em <http://respostasaoateismo.blogspot.com/2011/06/paradoxo-de-epicuro-o-problema-do-mal.html>. Acesso em: 21/10/2021.
VAIANO, B; MONTANARO, J; HARA, C. E. O que são e como funcionam os Teoremas da Incompletude de Godel. Revista Super Interessante. 2020. Texto online disponível em: <https://super.abril.com.br/especiais/os-teoremas-da-incompletude-de-godel/> Acesso em: 21/10/2021.
O meu godeliano favorito hehehe
ResponderExcluirI found your blog through StackOverflow and happened upon this post about Godel, so I translated it because this is so interesting.
ResponderExcluirYou mention the relationship between Godel and Escher, which is fascinating because there's an amazing book called "Godel, Escher, Bach" written by Douglas Hofstadter in 1979 that goes into detail (800 pages of detail) about this exact point! The similarity of your argument to especially Chapter 15 of GEB is shocking, and I would think you were summarizing his argument except that you say "A alegoria é uma ideia minha," which I think means "The allegory is my own idea."
I think you would find the book very interesting, as I have (I am reading it now).
Just a quote from p.472 to convince you of the similarity: "We must try to understand more deeply why [J.R.] Lucas says the computer cannot be programmed to 'know' as much as we do. Basically the idea is that we are always outside the system, and from out there we can always perform the 'Godelizing' operation, which yields something which the program, from within, can't see is true." And then in the next chapter he uses another Escher drawing, "Dragon," to demonstrate this paradox and then rebut Lucas' argument.
Anyways, just found this interesting and thought you would be as interested in the GEB as I am.
Thank tou for apreciating my text. I did not know abouth this book, I'm going to search it rigth now.
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